terça-feira, 14 de março de 2023

 Santiago



Nos idos dos anos 90, logo após concluir sua graduação no  curso de Cinema, João Moreira Salles decide rodar um documentário cuja personagem principal seria o antigo mordomo de sua família que, à época da produção, já estava reformado e morava sozinho num apartamento no Leblon.


Já vivendo há alguns anos longe da mansão da família na Gávea, onde nasceu e passou toda sua infância e parte da adolescência, João sente o desejo de revisitar aquele espaço/tempo e acredita que Santiago, o mordomo, poderia ser o “carregador dessas memórias”.


O documentário intitulado Santiago, cujas imagens foram colhidas em 1992 permaneceram guardadas sem que João as conseguisse finalizar, até que a retomada do material, 13 anos depois, em 2005 para enfim passar à tarefa de montá-lo.


O personagem, o diretor, o filme


Os Moreira Salles eram uma família abastada, de grande destaque na sociedade e bastante engajada na cena cultural carioca. Recebiam para grandes festas e banquetes em sua mansão, com muita frequência, figuras ilustres dentre as quais artistas, políticos e diplomatas.


Santiago Badarotti Merlo (1912-1994), argentino de nascimento, de ascendência espanhola, era o mordomo da família, serviu-os por 30 anos. Fluente em seis idiomas, homem de vasta cultura e hábitos refinados, adquiridos pela convivência de uma vida inteira dedicada a servir à aristocracia, Santiago encaixava-se perfeitamente naquele cenário. 


Num primeiro momento, a escolha de Santiago como protagonista do documentário poderia nos levar a crer que, para João, ele fosse o fio condutor daquela narrativa, uma vez que tendo sido testemunha, por três décadas, da grande atividade social e familiar da mansão, ele pudesse mesmo ser o grande e último elo entre João e as memórias de sua infância. Contudo, as imagens brutas do filme nos revelam algo bem diferente disso.


No que tange à parte técnica do filme, numa tentativa de analisar a relação de João com as imagens capturadas, recorremos ao filósofo francês Gilles Deleuze, que nos traz reflexões acerca da elaboração de uma classificação das imagens no cinema: imagens-movimento e imagens-tempo.


Para Deleuze (1985:31-32), as imagens-movimento são características do cinema clássico, onde o tempo se apresenta através do movimento; é uma relação indireta, que poderia ser exemplificada pelo cinema americano, de ação, onde num encadeamento lógico, as imagens agem e reagem umas sobre as outras, de forma que a captura de sentido se prolonga apenas pela ação, que é dada, pronta. 


Sendo o cinema em si uma forma de pensamento, nos parece que deslocar a captura de sentido cinematográfico, fundada nas imagens-movimento, para as imagens-tempo seria um caminho quase que inevitável.


As imagens-tempo, segundo Deleuze (1985:31-32), se nos apresentam anteriores ao movimento; como uma representação direta do tempo puro, ou seja, a captação imediata – aqui desligada da ação,  ela se prolonga diretamente no pensamento, este também anterior ao movimento, o que nos deixa a impressão de que os personagens deixam de ser tratados como meros objetos que necessitam da ação diretamente encadeada com o tempo, para tornarem-se sujeitos permeados por esse tempo.


No caso de Santiago é possível perceber que o olhar de João Moreira Salles estava tão cristalizado na concepção  do objeto, na qual ele aprisionou o mordomo, que não lhe foi possível perceber a riqueza do sujeito ali à sua frente. 


Não é preciso ser um especialista em técnicas cinematográficas, para notar alguns detalhes que deixam patente o afastamento do olhar de João em relação a Santiago, como por exemplo na cena em que, em primeiro plano vemos uma maçaneta com uma chave pendurada à fechadura, privilegiando, talvez uma maior significância de “outros” objetos em detrimento ao “personagem-objeto” que aparece ao fundo.

 

Ao adotar a postura de “dono” do filme, João não foi capaz de captar que naquele momento quem estava ali à frente de sua câmera era um homem em busca de suas memórias mais iniciais, utilizando-se das ferramentas de seu próprio ofício. João não conseguiu ver, mesmo com o auxílio de suas lentes, o infinito universo de Santiago, confinado naquele minúsculo apartamento.


À altura das filmagens, João não havia se dado conta que ali, mesmo depois de tantos anos mantinha com Santiago o distanciamento estabelecido pela relação filho-do-patrão/empregado. É clara a postura autoritária, fria e inquietantemente afastada com que João trata Santiago. As tomadas, todas em plano geral, mantém o objeto-Santiago distante do olhar que João não é capaz de desvelar a si mesmo.


Um olhar frio, distante e, em alguma medida cego, que contrasta com a paixão com que Santiago narra as histórias, escolhidas por João, mas que também são suas; a felicidade que ele não esconde por ter sido lembrado; a oportunidade – que João não lhe dá, de falar da verdadeira obra de sua vida, construída nos bastidores de seu ofício de mordomo: as 30.000 fichas copiadas, que tratam dos personagens e personalidades que foram sua companhia por tantos anos e, finalmente a frustrada tentativa de compartilhar com João algo que lhe parecia ainda mais importante do que tudo isso, que era um pequeno depoimento, preparado com todo esmero e que nem o chamado carinhoso foi capaz de emocionar: “- Joãozinho...”


Treze anos e alguns filmes depois, ao retomar o material bruto para finalmente concluir Santiago, um João mais maduro se depara com as imagens capturadas. Enfim se dá conta de quanto, à altura, ele não tinha sido capaz de perceber o que de fato importava naquele reencontro entre ele e Santiago.  Estão ali um Santiago-objeto, um diretor-patrão, um cineasta focado no encadeamento perfeito entre movimento e tempo...


João então se dá conta que em nenhum momento teve um olhar direcionado para Santiago; o Santiago humano; um homem que carregava dentro de si não somente as memórias da infância de João ou os anos de experiência na função de mordomo, mas também um universo particular que encerrava inúmeras memórias, ao longo de seus quase 80 anos de idade.


Entretanto, essa compreensão se dá tarde demais. Santiago morre pouco tempo depois das filmagens, deixando para João, em testamento, suas 30.000 fichas. O que foi filmado não pode mais ser modificado.


A retomada do material filmado nos anos 90 provoca no diretor um incontornável exercício de reflexão que envolve não somente sua postura como profissional, mas também como pessoa.  João não hesita em expor seus erros, sua incompreensão e incomunicabilidade.


Através da narração, em off, feita por seu irmão Fernando e com o auxílio de uma montagem impecavelmente hábil e sensível de Eduardo Escorel e Lívia Serpa, fica clara a forma como o diretor radicaliza, de forma confessional sua inabilidade à época das filmagens. A tardia montagem do filme, possibilitou a João Moreira Salles a percepção de sua impossibilidade de conexão com o sujeito por ele escolhido para ser a personagem de sua obra.


Ortega y Gasset, (1973) nos ensina que o homem, em geral, sempre demonstra em alguma medida, uma incapacidade de conhecer profundamente seu semelhante, mesmo quando acredita ter conseguido estabelecer um grau de intimidade que lhe possibilite esse conhecimento. A coisa é o sujeito, o objeto é o sujeito e a linguagem fala. E essas inversões nos dão um outro ponto de vista ou, pelo menos, uma outra via para se pensar a alteridade.


O “eu” é epigonal, ou seja, vem depois, nasce depois; por definição é um continuador, é um mimetizador de algo prévio. Antes há a vida, o mundo da vida, o horizonte, a perspetiva. Ora, se admitimos isso, não são o homem e a sua razão a primeira e a última instância para se dizer o que são a realidade, as coisas, a vida. 


Assim, a objetividade moderna, como por exemplo acontece nas ciências, é a construção do objeto segundo os moldes concebidos previamente na mente. É como o concípio de Galileu: o que se concebe previamente na mente leva à perda de uma forma verbal de comunicação como meio de compreensão do outro e da natureza. Em outras palavras, falamos aqui de ideias e costumes pré-concebidos, que por vezes ou até na maioria das vezes, nos leva agirmos de forma cristalizada em modelos do passado, sem que sejamos capazes de nos apercebermos.


 De alguma forma, tudo o que se relaciona, o faz a partir do ponto de vista das coisas, do olhar do outro, que, na verdade, não está condicionado somente à capacidade intelectual de um indivíduo, mas também à possibilidade de conhecimento do mundo, das experiências vividas, de sua capacidade ou não de se deixar envolver e reconhecer a alteridade.


Na observação das cenas brutas fica explícito para o espectador a incapacidade de João em estabelecer qualquer tipo de interação afetiva com Santiago. Talvez, a dificuldade encontrada por João em finalizar o filme à altura em que foi rodado, já apontasse, mesmo que de forma ainda velada para ele mesmo, sua insuficiência de recursos, não da ordem de suas faculdades intelectuais, mas àqueles da ordem da compreensão que reside em algum lugar para além dos sentidos. 


Na retomada do filme podemos notar a tentativa que João faz no sentido de, mesmo que tardiamente, ir ao encontro de Santiago. A forma implacável com que João trata a si mesmo, sem subterfúgios ou meias palavras ao longo da versão final do documentário, se transforma, em alguma medida, na condição de possibilidade por ele encontrada para reparar e preencher o vazio deixado pela obra até então inacabada.  


Santiago é, sem sombra de dúvida o relato comovente, transparente, corajoso e ao mesmo tempo perturbador da tomada de consciência por parte de João de seu papel como cineasta, que se dá conta que um artista, mesmo sendo criador, não é dono de sua obra, mas é a própria obra em curso que o orienta.


A ABRACCINE (Associação brasileira de críticos de cinema), em 2005 apontou o documentário Santiago e o listou como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. 


Santiago foi o último filme de João Moreira Salles.



Referências 

Deleuze, G. (1985). L’image-temps (IT). Paris. Minuit

Ortega y Gasset, J. (1973). O homem e a gente: intercomunicação humana. Tradução de José Carlos Lisboa. Rio de Janeiro. Livro Ibero-Americano, 2ª ed.


Recursos Eletrónicos

Machado, R. (2009). Deleuze e a crise do cinema clássico. Seminários MV

Retrieved from http:www.seminariosmv.org.br/20107textos7roberto_machado.pdf




O que farei com este livro?


No ano das comemorações do quarto centenário de morte de Luís Vaz de Camões, 1980, José Saramago foi convidado a criar uma peça sobre o poeta, principalmente por conta de suas poesias e crônicas, nas quais Camões era figura frequente.


Para escrever a peça Que farei com este livro? Saramago dedicou-se a uma pesquisa histórica, tentando buscar o máximo de informações confiáveis possíveis, uma vez que, como é sabido, as fontes histórico-biográficas sobre Camões são nebulosas e controversas. Como é recorrente na obra de Saramago, na peça, que não é sobre a vida de Camões, mas sim um pequeno recorte de um período de sua vida, é possível encontrar ficcionalização de personagens históricos e uma intertextualidade, neste acaso não explícita, com a conjuntura sócio-política de Portugal à altura, apenas há poucos anos da Revolução dos Cravos.


A peça


A ação se passa entre abril de 1570 e março de 1572. Camões volta a Lisboa, depois de 17 anos, vindo da Índia e de Moçambique. Traz consigo somente os manuscritos d’Os Lusíadas. Vem pela mão do amigo Diogo do Couto, que praticamente o resgata de Moçambique, pagando suas dívidas e sua passagem. Sem recursos, volta a viver na Mouraria, onde mora sua mãe, Ana de Sá, em uma casa simples, de poucos recursos.


No primeiro ato, Saramago retrata as vicissitudes e as redes de intrigas, típicas da corte, que nesse período estava transferida para Almerim, por conta da peste que assolava Lisboa. O reinado era o de d. Sebastião, um quse adolescente que não tinha lá muito interesse pelos assuntos específicos do reinado e que tinha sua masculinidade questionada pelos corredores do palácio, por sua resistência ao casamento.


A disputa entre o poder político e o poder religioso era declarada: de um lado D. Catarina de Áustria, avó do rei, e de outro o cardeal D. Henrique, seu tio. Cada um deles querendo destinos diferentes para o reino de Portugal, antecipando, cada um a seu modo, o futuro sombrio que aguarda o país.


À época do retorno de Camões a Portugal, a Inquisição está no auge, a peste já havia vitimado milhares de pessoas e o país estava prestes a perder sua independência. Era um momento triste tanto para o país, quanto para Camões, que retornado da Índia, alquebrado, pobre, desconhecido na corte, em total desamparo, não fosse pelas mãos generosas de alguns amigos, lutava para sobreviver na cidade mergulhada na peste e na pobreza.


O segundo ato apresenta os esforços de Camões para conseguir que seu livro seja publicado. Sem dinheiro e sem prestígio, ele conta com a ajuda prestimosa de D. Francisca de Aragão, dama da corte que, apaixonada por ele, intercede a seu favor na obtenção do alvará régio, para que ele possa levar seu manuscrito ao Santo Ofício, afim de que lhe seja concedido o alvará de impressão.


Camões enfrenta o relator do Santo Ofício designado para ser o examinador de seu livro. O padre inquisidor, escrutina o livro por diversas vezes, procurando sinais de heresia, fazendo com que Camões retorne várias vezes à sua presença para dar explicações e se submeter às alterações impostas, sob pena da não liberação do livro.


Depois de muitos meses nesse enfrentamento e por tantas vezes tendo sido hábil na argumentação para convencer o inquisidor de que seus versos nada mais faziam do que exaltar a Deus, à Pátria e el-rei, Camões finalmente recebe o alvará do Santo Ofício para a publicação da obra.


De posse da tão pelejada autorização, o poeta se vê diante de um obstáculo ainda maior: a falta de recursos para financiar a impressão. D. Francisca de Aragão oferece-se mais uma vez para ajudar, mas ele recusa veementemente. Camões então vai até a tipografia de António Gonçalves a fim de orçar os custos da eventual impressão do livro.


O poeta fica desolado com a resposta do tipógrafo, que o faz saber que, na situação de penúria em que se encontra, não terá a mínima condição de arcar com as despesas de impressão. António Gonçalves ainda sugere que Camões faça como os outros autores, que consiga um padrinho para arcar com a impressão, mas o poeta responde que seu livro não mereceu padrinho.


Dias depois, Camões volta à tipografia e propõe ao tipógrafo um acordo para a impressão, que pede para pensar antes de dar uma resposta. A cena final da peça mostra o servente do tipógrafo entregando a Camões um exemplar impresso d’Os Lusíadas.


A ação central da peça se passa num momento muito específico vivido por Camões e profundamente ligado à sua obra prima. A peste que se abate sobre a cidade de Lisboa à altura do retorno do poeta é histórica e metafórica. Existem sim relatos sobre a epidemia de peste de Lisboa pelos idos de 1570, mas a peste também é metáfora para os tempos sombrios pelos quais Portugal passava.


A melancolia que acomete o poeta se iguala à tragédia social da qual a nação é vítima. Da mesma forma, a corte revela a decadência do reino, a ignorância e a intolerância de seus cortesãos e o desprezo pela população.


O homem quinhentista se vê submetido ao abandono da peste, às atrocidades cometidas pela Inquisição, à censura que mutilava corpos e mentes em nome de um Santo Ofício. Um rei muito jovem que desaparece após uma batalha em uma terra distante e passa a fazer parte um imaginário mitológico e messiânico e da origem ao Sebastianismo – a crença no libertador que nunca regressa para erguer a nação, que cai de joelhos após a inevitável submissão que a união ibérica impõe aos portugueses.


Hábil como Camões, que para dar voz a seu livro usa de toda sua astúcia para conseguir obter seu alvará de impressão por parte do Santo Ofício, Saramago provoca, através do recorte temporal da peça, uma reflexão do público sobre o momento sócio-político-cultural vivido em Portugal em 1980, em que a conjuntura nacional está tão próxima da depressão como estava à altura do retorno do poeta.


A peste do século XVI representa os anos de chumbo da ditadura salazarista do século XX, a Inquisição representa a censura, que continuou mutilando e calando corpos e mentes. Ninguém mais espera pela volta de D. Sebastião, mas o próprio Camões é elevado à categoria de salvador da honra nacional, justamente por cantar o passado glorioso dos portugueses e servir como uma alavanca da moral nacional – recurso utilizado inicialmente por Almeida Garrett e depois pela própria ditadura.


O tom melancólico dado ao Camões-personagem assemelha-se ao tom atribuido ao Camões-histórico dos sonetos. Mas, apesar da tristeza, do cansaço e dos ares desesperançados do poeta na peça, é indiscutível o brilho e a argúcia, permeados com pitadas de ironia, com que o poeta enfrenta as arguições do examinador do Santo Ofício para garantir a liberação de seu livro.


Camões luta como um bravo soldado pela obra de sua vida.



Referências 

Lourenço, E. (1998). Mitologia da Saudade. São Paulo. Cia das Letras. 

Saramago, J. (1998). Que farei com este livro? São Paulo. Cia das Letras.

Saraiva, A.J. & Lopes, O. (2017). História da Literatura Portuguesa. Porto. Porto Editora.

Wikipedia DOI https://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_I_de_Portugal 

Acesso em: 01/06/2018









 A Cidade de Ulisses e o reencontro consigo mesmo


 A Cidade de Ulisses, de Teolinda Gersão, publicado em 2011, pela Sextante Editora, marca a volta da autora portuguesa, após quatorze anos da produção de seu último livro. 

O romance apresenta uma narrativa ficcional, fincada na concretude de elementos reais da cidade de Lisboa, ao mesmo tempo que, segundo a própria autora, alimenta um diálogo intenso com as artes plásticas, sendo inclusive, uma exposição de pintura sobre a cidade de Lisboa, o grande estopim para o despertar das memórias adormecidas da personagem, e o consequente desenrolar da trama. 

A narrativa tem como tema central a viagem, a abarcar todas as variações que o tema possa suscitar, tais como as viagens reais e as viagens imaginárias das personagens. Tema de presença emblemática na literatura portuguesa através dos tempos, e este mesmo um tema fundacional de Portugal, o tema da viagem é o fio condutor do romance. O leitor, inebriado pelo ritmo da sedutora escrita de Teolinda, embarca nessa jornada guiado pela voz da personagem/narrador Paulo Vaz, que dá o tom e a perspectiva masculina à narrativa. 

É no curso dessa leitura que vamos analisar como a intrínseca relação entre o tema da viagem e os topoi do mito e do amor, elementos de imensa força e potência, se entrelaçam e tecem o tecido vital capaz de abrigar, amparar, libertar e vislumbrar o passado, o presente e o futuro, numa trama onde o narrador/personagem é ele mesmo um (anti) herói mitológico e apaixonado, em busca de si mesmo. 

O início da viagem 

“A memória, como deve estar lembrado, é a mãe das musas”. (Gersão, 2011:18)

Paulo Vaz é um artista plástico já reconhecido internacionalmente quando retorna a Portugal, depois de longo tempo no exterior, a propósito de um convite do diretor do Centro de Arte Moderna, para fazer uma exposição de artes plásticas, cujo tema seria a cidade de Lisboa.  A partir desse convite, Paulo mergulha em uma viagem ao passado, levado por suas memórias - fiéis depositárias de uma história de amor vivida entre ele e a também artista plástica Cecília Branco. 

Conheceram-se na condição de professor e aluna, na Escola de Belas Artes de Lisboa e passaram, a partir daí, a descobrirem-se através do que lhes motivava a vida – as artes plásticas. Paulo, como que amparado pelas musas (1), que lhe sopram à memória como uma inspiração, narra detalhadamente o percurso do amor vivido com Cecília, desde o instante em que a viu pela primeira vez. Confessa a emoção e a fruição dos sentidos, de seus desejos inicialmente disfarçados, da explosão do amor, do regaço pelo encontro da interlocução idealizada e junto à Cecília finalmente encontrada. 

Juntamente à história de amor vivida com Cecília, Paulo percorre também as lembranças de si mesmo ou de como ele próprio via-se à altura ou ainda de como vivenciava suas relações afetivas, sua relação entre a arte e a literatura, bem como o seu próprio processo criativo, enquanto artista plástico. 

Tal qual um projétil que, depois de disparado, assume como que vida própria, a viagem de Paulo pelo labirinto de suas memórias toma a dimensão de uma jornada que, ao sabor dos ventos que sopram as velas içadas, navega por mares que, se por algum tempo permaneceram aparentemente sepultados, agora encontram a ocasião para reclamarem sua existência, como acontece quando Paulo revisita suas lembranças de infância na companhia dos pais. 

O percurso  

 “Os viajantes vão a procura de si, noutros lugares”. (Gersão, 2011:31)

Paulo e Cecília viveram por quatros anos um romance intenso que teve como pano de fundo a cidade de Lisboa, redescoberta através da História e da cultura, impregnadas nas ruelas e paisagens; revisitada pelo olhar sensível e apaixonado de ambos; reprojetada para ser seu porto seguro. 

Mimetizando Ulisses, a personagem da Odisseia (2) de Homero, Paulo, ao longo do percurso por suas memórias, identifica-se com o herói naufragado na praia, que é amado à primeira vista por Cecília, tal qual Ulisses teria sido por Nausicaa (4). 

Paulo é um homem “de passagem”; um homem que quando encontra Cecília, só está “ali de passagem”; não tem planos de permanecer professor, não tem planos de permanecer em Lisboa, não tem planos de permanecer... Paulo é um homem experiente, que já viveu outras histórias de amor, mas seu espírito insatisfeito não o deixa permanecer. Paulo é um viajante errante, sem rumo, sem porto. O amor por Cecília fez Paulo permanecer. 

“Uma cidade a conquistar, em que se ía penetrando pouco a pouco e descobrindo, abaixo da superfície, outras camadas do tempo”. (Gersão, 2011:156).

Durante o tempo em que estiveram juntos, Paulo e Cecília vivenciaram seu amor por Lisboa do modo que mais lhes era afeto: artisticamente. No romance, Teolinda, pela voz de Paulo, faz um passeio fortuito e generoso pela História de Portugal, pela influência e pelo legado político, cultural e literário gregos, que estruturaram a história civilizatória europeia, através de um intertexto riquíssimo, que congrega e vincula o texto literário com outras esferas da própria vida. 

Juntos Paulo e Cecília refundaram a cidade a partir de seus olhares sensíveis, contudo diversos; recriaram lendas, histórias, geografia, arquitetura; produziram individualmente um acervo inspirado no idílio que viviam entre si e com a cidade; fundiram-se com a alma de Lisboa e geraram dois filhos: o projeto imaginário de uma exposição denominada “A Cidade de Ulisses” e aquele que Cecília trazia no ventre. Cecília perdeu o filho. Paulo perdeu Cecília.

 “Éramos felizes, achávamos, sem palavras. Queríamos continuar assim”. (Gersão, 2011:115)

Paulo faz um percurso narrativo frenético pelos acontecimentos, nos âmbitos político, socioeconômico e cultural, situando espaço-temporalmente a cena pública dos anos de 1983 a 1987 e toda a atmosfera que circundava sua vida com Cecília. Narra a crise econômica avassaladora que tomou conta de Portugal à altura, desenhando com palavras o retrato do momento histórico conturbado que viviam, ele e Cecília, fora de casa. 

Em contraponto à kinesis (4) quase esquizofrénica externa, a casa era o refúgio. A vida com Cecília era serena, acolhedora, apaziguadora, na medida certa: nem mais, nem menos. A presença silenciosa, porém, atenta de Cecília era, talvez o oásis onde a alma, de natureza fugaz e insatisfeita de Paulo, repousava em segurança. 

“As mulheres gostam de esperar, pensei algumas vezes olhando-te, sem que desses conta, da mezzanine”. (Gersão, 2011:118) 

Os anos passavam-se e a organicidade da vida a dois se tornara, em alguma medida para Paulo, uma suave realidade, que ele ia absorvendo ao longo dos dias. Mas, apesar da tranquila fluidez dessa partilha diária, ele não deixava de observar a flagrante harmonia entre opostos que se havia instalado naquele ateliê da Graça. E a mais patente oposição residia na relação que cada um deles tinha com o tempo. Seus tempos de produção artística eram distintos. Urano e Gaia (5) os orientavam. 

Como um guerreiro espartano, que vive exclusivamente para seu ofício de guerra, Paulo pintava um quadro atrás do outro, tomado de um vigor e um entusiasmo, nunca experimentados. Cecília, como uma helena, gestava sua obra, seus planos e seus sonhos. Dia a dia. Sem pressa. Sem ansiedade e sem alarde. Como quem sabia que para tudo há um tempo certo. E Paulo a observava, sem se dar conta à altura, nem mesmo depois da chegada do gato Leopoldo, daquilo que somente algum tempo depois se apercebeu: Cecília gestava o futuro, enquanto sorvia o presente. 

"Quatro anos é um pedaço de tempo muito pequeno (…) Poderia dizer que foram sempre dias felizes (…) Mas não estaria a ser exato." (Gersão, 2011:120) 

Como que a inverter a gênesis (6), em apenas um segundo, o caos (7) se seguiu ao cosmos (8) . Num ataque de fúria descontrolada, Paulo agride Cecília, quando ela fala sobre sua gravidez. Queda. Sangue. Aborto. Silêncio. Adeus. 

Paulo esperou pela volta de Cecília, não sem antes ter tentado de todas as formas falar com ela, sem sucesso. Por meses a fio, a dor, a solidão e o abandono experimentados pela partida de Cecília fizeram Paulo deambular por bares, restaurantes, becos e ruas de Lisboa, a travar insólitos diálogos mentais com ela. Diálogos aos quais, no fundo, sabia não teria mais direito. Confessava sua culpa, mas também se sentia traído. Traído por ter sido objetivado pelo desejo dela. Pelo sonho dela. Pelos planos (secretos) dela. Traído por si mesmo. Por não se ter dado conta que a chegada de Leopoldo era um prenúncio…

Lentamente, Paulo toma consciência de que a partida de Cecília é mesmo definitiva. Ela foi-se e levou consigo seus esboços, seus cadernos de estudos e  Leopoldo. Tudo mais ficara para trás. Em escombros. E a Lisboa que eles haviam criado juntos desaparecia junto com ela. 

Decidido a seguir em frente com sua vida, agora sozinho como antes, Paulo retoma sua jornada interrompida pelo período em que viveu com Cecília e deixa Lisboa rumo a Berlim, ponto de partida para um exílio auto imposto. Corre o mundo, conhece pessoas, desenvolve seu trabalho, impulsiona sua carreira e firma-se como artista plástico internacionalmente reconhecido. Volta à sua condição de errante navegante, sem pertença. 

"Olhando para trás, todo esse tempo foi estimulante e produtivo e não posso me queixar de nada." (Gersão, 2011:160)

Passados vinte anos, Paulo retorna a Lisboa. Reencontra os amigos; entre eles Rui, amigo fiel, de longa data, com quem mais amiúde mantinha contato, e com Maria Rosa, que lhe deu notícias de Cecília. Encontrava-se casada. Tinha duas filhas e vivia na Suécia. 

Paulo, assim como Ulisses quando finalmente retorna a Ítaca, encontra uma Lisboa diferente. Mais triste. Mais pobre, mergulhada em uma crise económica e social profunda. A Lisboa iluminada e poética tinha ficado no passado, nos idos dos anos oitenta que, apesar de igualmente terem sido anos de crise, ainda eram capazes de inspirar algum ideal lírico. 

Alguns meses depois, ainda em Lisboa, Paulo conhece Sara. À altura, Paulo apercebe-se que seu interesse por aquela mulher experiente e reservada estava para além da impermanência e do distanciamento que, em alguma medida, havia imposto às relações que tivera nos últimos anos. Dá-se a chance de conhecê-la e deixar-se conhecer. Algo se transmuta em seu universo errático, e ele, pela segunda vez na vida, vê-se a ficar em Lisboa por causa de uma mulher. Entretanto, desta vez, a opção pela permanência é consciente, consentida. 

Paulo não sentia mais a ansiedade pela busca ou a angústia latejante da perda de si em outrem. Percebia que era possível harmonizar seu lado cidadão do mundo (Gersão, 2011:168) com o prazer que sentia em estar na companhia de Sara. Amar uma pessoa é falar-lhe quando ela não está presente, disse alguém. (Gersão, 2011:177) 

Algum tempo depois, em maio, em uma exposição do artista plástico Miguel Luz, Paulo tem um encontro inesperado com Cecília, que à altura estava de volta a Lisboa, por conta da vida profissional do marido. Meses antes, em conversa com Rui, Paulo ficou sabendo que Cecília estava a morar em Lisboa, mas sentiu-se indiferente quanto à sua presença na cidade. 

A vida anda, passam-se os meses, e em outubro, encontram-se, mais uma vez, por acaso no Ikea. Encontro improvável. Lugar prosaico. Um café. O suficiente para Cecília revelar-lhe que, ao longo dos anos, acompanhava sua carreira, que estava feliz com a vida que levava, mas que conhecê-lo havia sido a coisa mais importante que lhe teria acontecido. Passou-lhe o número do celular, com a promessa de outro café. 

Ao longo dos dois meses seguintes, as emoções de Paulo entraram em ebulição. De um momento para o outro, a sensação de segurança e de estar-se no controle da própria racionalidade colapsaram. Se, por um lado, a sensatez e prudência tentavam mantê-lo à margem segura, por outro, dentro de Paulo um vulcão entrava em erupção. Sabia que ela tinha outra vida, assim como ele, e que racionalmente era impensável qualquer possibilidade de mudar isso, mas não lhe era possível controlar a avalanche de sentimentos, de lembranças da vida compartilhada, do futuro interrompido, e todo o não-dito, que o encontro com Cecília havia desencadeado. 

Reza a mitologia que, desde tempos imemoriáveis, nem os deuses, nem os homens fogem ao destino. Ao final de dezembro, Cecília morre num acidente viário, ao qual sobrevivem seu marido e filhas. Mais uma vez, o que ficou por dizer toma conta de tudo. Um tudo agora repleto de nada. Os dias que se seguem à morte de Cecília, Paulo passa-os enclausurado clandestinamente em Lisboa, recolhido em memórias, outra vez mergulhado em diálogos mentais, acossado por perguntas que, sabia, nunca mais poderiam ser respondidas. Ao menos por Cecília. 

“A Cidade de Ulisses, Exposição de Cecília Branco” (Gersão, 2011:183) 

Meses mais tarde, no curso dos trabalhos de preparação da Exposição sobre Lisboa, Paulo é procurado pelo marido de Cecília, que lhe informa sobre o grande acervo deixado por ela e que, a seu pedido, na sua ausência, deveria ser entregue a Paulo, que decide mudar o projeto original da exposição, tornando-a agora a exposição de Cecília, da qual ele seria o organizador. 

Iniciado o trabalho de análise da obra, Paulo mergulha no universo de Cecília. E, dentre todas as viagens que já havia feito na vida, essa seria, talvez a que dele demandasse mais coragem. Precisaria lançar mão de todos os seus recursos e habilidades de experiente navegante, para escapar às armadilhas que seu espírito, por certo, seria submetido, em tal empreitada. 

"Queria seguir-te no teu percurso, Cecília. E antes de mais era tu própria que eu procurava nas obras, nas imagens, nas fotografias. Numa vida que eu não conhecia."  (Gersão, 2011:187)

Por dias e noites seguidas pôs-se a assistir CDs, DVDs, analisar os cadernos de estudos, esboços, textos. Tal como uma bússola, por vezes a voz de Cecília guiava-o pelo labirinto de fragmentos, em outras eram suas lembranças que serviam como um fio de Ariadne. A viagem imaginária de Paulo pelo universo de Cecília perpassava por registros de outras viagens: reais e imaginárias. Dele e de Cecília. Através do legado de Cecília, Paulo teve, enfim a oportunidade tão sonhada, algumas vezes consciente, outras não, de reconciliar-se com o passado, até então suspenso e inacabado. Organizar e realizar a Exposição de Cecília Branco foi o fôlego e alguma espécie de permissão que lhe faltava para finalmente, chegar a um bom porto. 

“Nostos” (9) (Gersão, 2011:203) 

Chega o dia da inauguração da exposição. Paulo percorre o espaço, prenhe de Cecília. Seu olhar, sua voz, seus sonhos, suas viagens, sua obra, sua presença. A partir daquele momento, Cecília deixava de ser somente Cecília, para tornar-se Cecília Branco. 

Para Paulo é o momento de sair do labirinto, encontrar o rumo, navegar por águas mais amenas. Paulo conseguira, em alguma medida, o tempo a sós com Cecília, que por tanto tempo ansiou. Realizar aquela exposição deu à história deles o ponto final necessário para que uma nova história pudesse ganhar espaço, tomar forma. 

Diz-se que casa é onde está o coração. E não é à toa que os antigos gregos, por vezes, utilizavam a mesma palavra para nomear coração e coragem – thymós (10). Paulo avisa à Sara que finalizara o trabalho e iria ao seu encontro no Brasil. Antes de desligar a chamada, Sara diz a Paulo que ele era o homem por quem ela esperou a vida inteira. Havia chegado finalmente, para aquele errante viajante, que enfrentara tantos percalços, fantasmas, e obstáculos ao longo da jornada, a hora do regresso à casa. Para a mulher que, por tanto tempo, havia esperado por ele. 

Em romances orientados pelo tema central da viagem, encontramos uma representação da diversidade do mundo baseada em conceitos espaciais e estéticos. A vida se apresenta como uma sucessão de situações onde estão presentes diferenças e contrastes justapostos espacialmente, representados por situações de amor-desamor, conquistas-derrotas, sucesso-insucesso. 

No que concerne à representação do tempo, apenas o tempo da aventura é elaborado. O tempo biogeográfico passa por uma via onde o sentido se faz através do fio histórico, seja pelos acontecimentos individuais que marcam a juventude, a maturidade e a velhice das personagens, seja pela narrativa de sucessivos acontecimentos coletivos transcorridos ao longo da ação do romance.(11) 

Na narrativa de Teolinda Gersão é possível identificar as viagens imaginárias, que compreendem as memórias da personagem intradiegética e seus diálogos mentais, bem como viagens físicas empreendidas por Paulo e outras personagens do romance. 

Somadas a elas, encontramos variadas referências históricas, geográficas, socioeconómicas e políticas que possibilitam a criação de relações com outras categorias - incluindo as artes plásticas, que no caso de A Cidade de Ulisses aparece como principal intertexto – e que se configuram como elementos que estão, por si, impregnados de tanta significação, que imprimem uma realidade espaço-temporal muito concreta às personagens e à narrativa propriamente dita. 

A fiel descrição de lugares, freguesias, ruas e monumentos é feita por Teolinda/Paulo - imagens da vida típica de Lisboa. Mesmo o simples registro das atividades mais prosaicas da vida lisboeta é de tal forma fluida e serena que faz despertar o apetite do leitor curioso que nunca tenha estado na cidade, do mesmo modo que provoca em quem já teve o prazer de visitar Lisboa um sentimento de cumplicidade e pertença ao cenário secular.

Tradição da cultura e literatura portuguesas, o tema da Viagem, estruturador do romance A Cidade de Ulisses, é um forte traço do inconsciente coletivo português. Navegador, desbravador, conquistador. O homem português carrega em si a marca atávica daqueles que deixaram sua terra e suas famílias, sem nenhuma garantia de retorno e se lançaram ao mar. Homens que durante suas jornadas deparavam-se o tempo todo com lugares e situações que lhes eram completamente desconhecidos, estranhos, diferentes.

Como receptáculos de imagens, além dos desafios que as viagens lhes impunham, inerentes à sua condição de heróis, os navegadores enfrentavam também a tarefa de narrar o mundo, conforme nos mostra o antropólogo brasileiro Sergio Buarque de Holanda, no curso da leitura do primeiro capítulo de seu livro Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil (2000:1-17).  Traziam consigo nesses nostoi (12) as palavras que, ao nomearem as coisas, davam-lhes sentido e as eternizavam. Fiel a essa herança histórica, o povo português segue, através dos tempos, a lançar-se para além das terras portuguesas, a espalhar-se pelo mundo. 

Assim como as viagens, o mito também é parte integrante da História e da cultura fundacional de Portugal. Um deles, o mais famoso, é o mito de que Lisboa teria sido fundada por Ulisses, que em sua viagem de regresso a Ítaca, ao fim da guerra de Tróia, teria dado por estas terras e fundado a cidade de Ulisseum, depois tornada Olissipo pelos romanos e hoje Lisboa. 

Ao longo do estudo dos dois primeiros do livro Mito e Realidade (1972:6-30), de Mircea Eliade observamos que o mito tem a função primordial de desvelar e explicar ao homem sua origem, sua localização, seus costumes, sua cultura, suas crenças e sua inexorável ligação com o divino e que o ponto crucial dessa concepção está ligado à origem, que está sempre a se atualizar, uma vez que o tempo presente só ganha compreensão nessa origem. 

De forma complementar, Gusdorf (1979:28) ensina que essa relação “se afirma como a forma espontânea do ser no mundo – nem teoria, nem doutrina, mas apreensão das coisas e inserção do homem na realidade” E, mesmo no que tange à transmutação do imaginário, do divino, essa relação se dá na concepção originária de tempo circular, própria do mito, onde o passado e o futuro estão em eterno movimento, se fundindo no presente, onde o homem revive sua origem, para a realidade que se fixa na concepção linear de tempo da história, onde o homem é capaz de medir sua evolução. 

Teolinda revisita o mito da fundação de Lisboa e com isso aproxima Paulo, a personagem intradiegética, a Ulisses, herói da Odisseia de Homero. Assim como Ulisses, Paulo é um homem de espírito irrequieto, que alimenta o instinto latente da partida, da impermanência das coisas e das relações. Foge ao pertencimento a lugares, a pessoas, ao amor. Um homem angustiado pelo medo de perder-se no outro. Impermanente, mas territorialista, pois não admite partilhar seu espaço no mundo, nem o amor de Cecília com um filho. Ele é, como Ulisses, uma representação de contrastes. 

Ulisses é rei de uma cidade próspera e pacífica. Ama e sabe que é amado por sua mulher Penélope e por seu filho Telémaco. Mas essa paz não é impedimento para que ele os abandone e parta para a guerra de Troia. Uma guerra que nem é sua. Vai por fidelidade a Menelau, traído por Páris e Helena. Volta pelo amor e pela fidelidade que devota à Penélope, que permaneceu à sua espera ao longo dos dez anos em que lutou na guerra e outros dez que vagou por mares e terras desconhecidas, sob o castigo imposto por Poseidon, até que pudesse voltar a Ítaca.  As aventuras de Ulisses representam a viagem tautológica de um homem em busca de si. É preciso perder-se para encontrar-se em si mesmo. 

A Odisseia é fundamentalmente um poema de nostos, que significa regresso à casa, mas que em alguma medida também subsume a ideia de nostalgia, de falta. E esse regresso sempre carrega em si a possibilidade do reencontro. 

No poema, Ulisses anseia retornar a Ítaca por amor à sua terra, por amor à Penélope, por si mesmo. O Amor é, por si, a possibilidade de retomada do movimento próprio e inerente a alma humana. A semelhança natural que existe entre o amor e a alma - Eros e Psyché (13), uma vez que ambos são essencialmente movimento e impulso capazes de nos lançar à transcendência, é de onde tiramos a nossa própria possibilidade de existência e sentido de Ser. É essa transcendência que o amor nos proporciona que constitui a nossa condição de humanidade.  

Nos mitos gregos clássicos, Eros era considerado um dos grandes princípios constituintes do universo, como a força irresistível que propiciava a continuidade da vida dos homens e dos animais (cf. Zegers, 2009:189-197). O mito de Eros e Psyché conta-nos que Afrodite, mãe de Eros, por ciúmes da beleza de Psyché, ordenou que Eros a punisse, entregando-a em matrimônio a um monstro horrendo. Mas, no momento em que Eros pôs os olhos em Psyché, apaixonou-se irremediavelmente, não tendo coragem de obedecer às ordens da divina Afrodite. É interessante notar algumas das características do amor que o mito nos fornece. De acordo com Octavio Paz (1993:35), o amor é uma atração involuntária por outra pessoa e, por sua vez, a voluntária aceitação dessa atração. 

O entrelaçamento entre o tema da viagem e os topoi (14) do mito e do amor, pode ser identificado por todo o romance, como quando Teolinda descreve a excitação sentida por Paulo à primeira vista de Cecília, fazendo o narrador parecer-se com o amante (erástes15) retratado no Mito da Parelha Alada, que narra o cortejo que as parelhas dos deuses formam a seguir Zeus pelas abóbadas celestes, apresentado a Fedro por Sócrates, no diálogo Fedro de Platão: 

"O iniciado de pouco, pelo contrário, que tantas coisas belas já contemplou no céu, quando enxerga alguma feição de aspeto divino, feliz imitação da beleza (...) de início sente calafrios. De seguida, fixando a vista no objeto, venera o como uma divindade. (...) À sua vista é acometido de todo um cortejo dos calafrios (...) Apenas recebe por intermédio dos olhos eflúvios da Beleza (...). Então,tudo na alma é ebulição e efervescência." (1972:147) 

Este mito, segundo Nussbaum, (2009:188), descreve a visão da beleza terrena que, inicialmente, desperta um apetite bestial pelo intercurso, misturado com emoções complicadas de temor, admiração e respeito. Um estado de inspiração passional, em que todos os elementos da alma se encontram em um estado extraordinário de excitação. Poderíamos aqui discorrer por mais inúmeros mitos que versam sobre o amor, a paixão, a coragem, sobre partidas e regressos; e mais ainda, sobre a filosofia que nos oferece inúmeras lições sobre o movimento frenético (kinesis tou frenou) que acossa o espírito dos homens; sobre a afirmação de que Eros é loucura, desmedida (manía erotiké), mas que ao mesmo tempo é ético e filosófico, pois é também conciliador das lutas e conflitos vividos pela alma. 

Em discurso proferido durante o banquete realizado na casa do poeta Agatão, narrado no diálogo O Banquete de Platão (1972:28-32), Aristófanes, dramaturgo grego, autor de As Nuvens, define a natureza humana como um symbolon, termo grego que significa símbolo, mas também pode designar signo e senha, ou seja, um elemento que serve para reconhecer-se algo ou alguém.  Para os gregos o symbolon era um objeto que podia ser um pequeno pedaço de madeira, uma guia, ou uma vértebra de algum animal, que duas pessoas que se amavam guardavam cada uma, uma metade. Para ter identidade, as duas metades deveriam encaixar-se. 

Diz o mito que em tempos remotos, a forma do homem era diversa da que conhecemos hoje: duas cabeças, quatro braços, quatro pernas, dois sexos. E quanto a seu andar era também ereto como o é hoje, mas quando se lançavam, moviam-se em círculos, dados os seus oito membros. 

Eram de uma força e de um vigor terríveis e, presunçosos que eram, desafiaram os deuses. Zeus, então, como castigo, partiu-os ao meio, separando-os. Segue-se que desde que a natureza humana foi repartida em duas, cada metade anseia pela sua outra parte, e deambula pelo mundo numa viagem em busca do seu outro. É desde então que o amor de um pelo outro faz parte do homem, em sua tentativa de fazer um só, a partir de dois cingidos, e assim restaurar e curar a natureza humana. 

No romance de Teolinda Gersão, Paulo e Cecília têm um symbolon: seu elemento de reconhecimento é a exposição A Cidade de Ulisses. Após o término da organização e montagem da exposição, Paulo sente-se enfim recomposto, como se tivesse conseguido encontrar sua metade que faltava e assim, sentir-se completo, íntegro, pronto para ir ao encontro de Sara.

Considerações Finais 

Pensar o amor não como um mero desejo, mas um caminho ascensional, que nos leva ao que nos é familiar; para um futuro que nos dá as maiores esperanças, faz-me, depois de alguma resistência, perceber o porquê da autora afirmar que este era um livro de final feliz… 

Em um primeiro momento, parece custoso aceitar que o fim de um amor, a morte de uma personagem de tanta relevância quanto Cecília, a impossibilidade de uma conversa esclarecedora e, quem sabe reconciliadora entre as personagens principais pudessem ser ingredientes da “fórmula de um final feliz”. Entretanto, ao longo do caminho traçado pela autora e percorrido pelo protagonista temos a grata oportunidade de conceber uma outra possibilidade. 

É possível perceber que os finais felizes abarcam não somente os finais românticos, mas as formas de superação humana, diante das circunstâncias da vida, sobre as quais não temos nenhum tipo de controle. O mesmo amor que fere, que abate e desespera, paradoxalmente é o mesmo amor que cura, que fortalece, que revigora. E esse vigor de sentir-se vivo é o que nos faz plenamente felizes e realizados, pois extraordinárias são as emoções que sentimos quando encontramos nossa metade, mas, sem sombra de dúvida, nada se compara ao reencontro consigo mesmo. 

Notas

(1) No grego μούσες, filhas de Mnemosine (a memória) e Zeus, eram entidades a quem era atribuída a capacidade de inspirar a criação artística. As musas cantavam o presente, o passado e o futuro, acompanhadas pela lira de Apolo.

(2) No grego Οδύσσεια. Poema clássico atribuído a Homero, poeta grego que teria vivido no século X a. C. A Odisseia conta as aventuras de Ulisses ou Odisseu para conseguir regressar a ilha de Ítaca, da qual é o rei, ao fim da guerra de Tróia, que teria se prolongado por 10 anos. Por conta de um castigo imposto por Poseidon, Ulisses vagueia numa viagem errática por 10 anos, até que com a ajuda dos Feaces consegue voltar para casa. 

(3) Em grego Νάουσικα, filha do rei Alcinoo e da rainha Areté, encontra Ulisses desacordado na praia, na ilha dos Feaces, exímios navegadores. Nausicaa apaixona-se à primeira vista por Ulisses, que lhe revela ser casado e fiel à esposa Penélope, que ele anseia reencontrar. Nausicaa leva-o para o palácio e pede ao pai que ajude Ulisses a regressar à Ítaca.

(4) Em grego κίνηση, significa movimento, mobilidade. 

(5) Em grego Ουρανός e Γάια, representações do céu e da terra, deuses primordiais; segundo a mitologia grega são os pais da primeira geração de deuses.

(6) Em grego Γένεση, na mitologia grega ensina a criação do mundo. 

(7) Em grego χάος, deriva de χαίνω, que significa “separar”, “ser amplo”, que representa o espaço vazio primordial.

(8) Em grego κοσμο, significa ordem, organização, beleza, harmonia. Designa o universo em sua totalidade.

(9) Em grego Vόστος. Significa regresso a casa. Deu origem à palavra nostalgia.

(10) Em grego θύμος . Platão, no diálogo Fedro, ensina que thymós é a parte irascível da alma, sede da coragem, idealmente aliada da razão (νοῦς) na luta contra os apetites e, de igual forma, idealmente obediente aos comandos da razão, sendo censurada e acalmada por ela. 

(11) cf. Bakhtin, 1997:224-225.

(12) Retorno à casa.

(13) Em grego Έρως e Ψυχή, respetivamente, Amor e Alma. ros, o deus do amor, que no mito, se apaixona pela mortal Psyché.

(14) Em grego τόπος (singular), τόποi (plural), elemento de composição, exprime a ideia de lugar; na retórica clássica refere-se à construção de um argumento. 

(15) Em grego Εραστές (erástes), o amante, descrito no diálogo Fedro, de Platão como o amante mais velho que se apaixona por um jovem (ἐρώμενος - eromênos).


Referências 

Bakhtin, M. (1997). Estética da criação verbal. Tradução de Maria E. G. G. Pereira. São Paulo. Editora Martins Fontes. Coleção Ensino Superior, 2ª ed. 

Cornford, F. (1991). La teoria platónica del conocimiento. Buenos Aires: Paidos

_____________.(1987). Principium Sapientiae:Las origenes del pensamento filosófico griego. Madrid: Visor. 

Dodds, E. R. (1983). Las bendiciones de la locura. Em: Los griegos y lo irracional. Tradução de Maria Araujo. Madrid: Alianza. 

Eliade, M. (1972). Mito e Realidade. São Paulo. Editora Perspectiva S. A. Gersão, T. (2011). A Cidade de Ulisses. Porto: Sextante Editora, 2ª ed. 

Griswold Jr., C. L. (1986). Self-Knowledge in Plato’s Phaedrus. New Heaven. Yale University Press. 

Gusdorf, G. (1978). Mito e Metafísica. São Paulo. Convívio. Holanda, S. B. (2000). Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo. Editora Brasiliense. 

Homero. (1998). Odisseia. Em: Hélade. Organização e Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Instituto de Estudos Clássicos. 

Nicholson, G. (1998). Plato’s Phaedrus. The Philosophy of Love. USA: Purdue University Press. 

Nussbaum, M. C. (2009). A fragilidade da bondade, fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Tradução de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes. 

Platão. O Banquete. (1972). Tradução de José C. de Souza. São Paulo. Abril S. A. 1ª ed. _____. Fedro. (2010). Tradução de Armando Poratti. Madrid. Ediciones Akal S.A. 

Vernant, J. (2002). As Origens do Pensamento Grego. Tradução de Isis B.B. da Fonseca. Rio de Janeiro. Difel. 

Pájaro M., C. J. (2008). Eros, Psyché y Manía: Los recursos de la inspiración filosófica según Platón. Eidos. Revista de Filosofia de la Universidad del Norte, nº 9, 134-164 Retrieved from https://dialnet.unirioja.es/servelet/articulo?codigo=2906600 

Zegers, O. D. (2009). Eros y Tanatos. Revista Salud Mental, volume 32, nº 3, 189-197.  Retrieved from http://www.revistasaludmental.mx/index.php/salud_mental/article/view/1283