terça-feira, 14 de março de 2023

 Santiago



Nos idos dos anos 90, logo após concluir sua graduação no  curso de Cinema, João Moreira Salles decide rodar um documentário cuja personagem principal seria o antigo mordomo de sua família que, à época da produção, já estava reformado e morava sozinho num apartamento no Leblon.


Já vivendo há alguns anos longe da mansão da família na Gávea, onde nasceu e passou toda sua infância e parte da adolescência, João sente o desejo de revisitar aquele espaço/tempo e acredita que Santiago, o mordomo, poderia ser o “carregador dessas memórias”.


O documentário intitulado Santiago, cujas imagens foram colhidas em 1992 permaneceram guardadas sem que João as conseguisse finalizar, até que a retomada do material, 13 anos depois, em 2005 para enfim passar à tarefa de montá-lo.


O personagem, o diretor, o filme


Os Moreira Salles eram uma família abastada, de grande destaque na sociedade e bastante engajada na cena cultural carioca. Recebiam para grandes festas e banquetes em sua mansão, com muita frequência, figuras ilustres dentre as quais artistas, políticos e diplomatas.


Santiago Badarotti Merlo (1912-1994), argentino de nascimento, de ascendência espanhola, era o mordomo da família, serviu-os por 30 anos. Fluente em seis idiomas, homem de vasta cultura e hábitos refinados, adquiridos pela convivência de uma vida inteira dedicada a servir à aristocracia, Santiago encaixava-se perfeitamente naquele cenário. 


Num primeiro momento, a escolha de Santiago como protagonista do documentário poderia nos levar a crer que, para João, ele fosse o fio condutor daquela narrativa, uma vez que tendo sido testemunha, por três décadas, da grande atividade social e familiar da mansão, ele pudesse mesmo ser o grande e último elo entre João e as memórias de sua infância. Contudo, as imagens brutas do filme nos revelam algo bem diferente disso.


No que tange à parte técnica do filme, numa tentativa de analisar a relação de João com as imagens capturadas, recorremos ao filósofo francês Gilles Deleuze, que nos traz reflexões acerca da elaboração de uma classificação das imagens no cinema: imagens-movimento e imagens-tempo.


Para Deleuze (1985:31-32), as imagens-movimento são características do cinema clássico, onde o tempo se apresenta através do movimento; é uma relação indireta, que poderia ser exemplificada pelo cinema americano, de ação, onde num encadeamento lógico, as imagens agem e reagem umas sobre as outras, de forma que a captura de sentido se prolonga apenas pela ação, que é dada, pronta. 


Sendo o cinema em si uma forma de pensamento, nos parece que deslocar a captura de sentido cinematográfico, fundada nas imagens-movimento, para as imagens-tempo seria um caminho quase que inevitável.


As imagens-tempo, segundo Deleuze (1985:31-32), se nos apresentam anteriores ao movimento; como uma representação direta do tempo puro, ou seja, a captação imediata – aqui desligada da ação,  ela se prolonga diretamente no pensamento, este também anterior ao movimento, o que nos deixa a impressão de que os personagens deixam de ser tratados como meros objetos que necessitam da ação diretamente encadeada com o tempo, para tornarem-se sujeitos permeados por esse tempo.


No caso de Santiago é possível perceber que o olhar de João Moreira Salles estava tão cristalizado na concepção  do objeto, na qual ele aprisionou o mordomo, que não lhe foi possível perceber a riqueza do sujeito ali à sua frente. 


Não é preciso ser um especialista em técnicas cinematográficas, para notar alguns detalhes que deixam patente o afastamento do olhar de João em relação a Santiago, como por exemplo na cena em que, em primeiro plano vemos uma maçaneta com uma chave pendurada à fechadura, privilegiando, talvez uma maior significância de “outros” objetos em detrimento ao “personagem-objeto” que aparece ao fundo.

 

Ao adotar a postura de “dono” do filme, João não foi capaz de captar que naquele momento quem estava ali à frente de sua câmera era um homem em busca de suas memórias mais iniciais, utilizando-se das ferramentas de seu próprio ofício. João não conseguiu ver, mesmo com o auxílio de suas lentes, o infinito universo de Santiago, confinado naquele minúsculo apartamento.


À altura das filmagens, João não havia se dado conta que ali, mesmo depois de tantos anos mantinha com Santiago o distanciamento estabelecido pela relação filho-do-patrão/empregado. É clara a postura autoritária, fria e inquietantemente afastada com que João trata Santiago. As tomadas, todas em plano geral, mantém o objeto-Santiago distante do olhar que João não é capaz de desvelar a si mesmo.


Um olhar frio, distante e, em alguma medida cego, que contrasta com a paixão com que Santiago narra as histórias, escolhidas por João, mas que também são suas; a felicidade que ele não esconde por ter sido lembrado; a oportunidade – que João não lhe dá, de falar da verdadeira obra de sua vida, construída nos bastidores de seu ofício de mordomo: as 30.000 fichas copiadas, que tratam dos personagens e personalidades que foram sua companhia por tantos anos e, finalmente a frustrada tentativa de compartilhar com João algo que lhe parecia ainda mais importante do que tudo isso, que era um pequeno depoimento, preparado com todo esmero e que nem o chamado carinhoso foi capaz de emocionar: “- Joãozinho...”


Treze anos e alguns filmes depois, ao retomar o material bruto para finalmente concluir Santiago, um João mais maduro se depara com as imagens capturadas. Enfim se dá conta de quanto, à altura, ele não tinha sido capaz de perceber o que de fato importava naquele reencontro entre ele e Santiago.  Estão ali um Santiago-objeto, um diretor-patrão, um cineasta focado no encadeamento perfeito entre movimento e tempo...


João então se dá conta que em nenhum momento teve um olhar direcionado para Santiago; o Santiago humano; um homem que carregava dentro de si não somente as memórias da infância de João ou os anos de experiência na função de mordomo, mas também um universo particular que encerrava inúmeras memórias, ao longo de seus quase 80 anos de idade.


Entretanto, essa compreensão se dá tarde demais. Santiago morre pouco tempo depois das filmagens, deixando para João, em testamento, suas 30.000 fichas. O que foi filmado não pode mais ser modificado.


A retomada do material filmado nos anos 90 provoca no diretor um incontornável exercício de reflexão que envolve não somente sua postura como profissional, mas também como pessoa.  João não hesita em expor seus erros, sua incompreensão e incomunicabilidade.


Através da narração, em off, feita por seu irmão Fernando e com o auxílio de uma montagem impecavelmente hábil e sensível de Eduardo Escorel e Lívia Serpa, fica clara a forma como o diretor radicaliza, de forma confessional sua inabilidade à época das filmagens. A tardia montagem do filme, possibilitou a João Moreira Salles a percepção de sua impossibilidade de conexão com o sujeito por ele escolhido para ser a personagem de sua obra.


Ortega y Gasset, (1973) nos ensina que o homem, em geral, sempre demonstra em alguma medida, uma incapacidade de conhecer profundamente seu semelhante, mesmo quando acredita ter conseguido estabelecer um grau de intimidade que lhe possibilite esse conhecimento. A coisa é o sujeito, o objeto é o sujeito e a linguagem fala. E essas inversões nos dão um outro ponto de vista ou, pelo menos, uma outra via para se pensar a alteridade.


O “eu” é epigonal, ou seja, vem depois, nasce depois; por definição é um continuador, é um mimetizador de algo prévio. Antes há a vida, o mundo da vida, o horizonte, a perspetiva. Ora, se admitimos isso, não são o homem e a sua razão a primeira e a última instância para se dizer o que são a realidade, as coisas, a vida. 


Assim, a objetividade moderna, como por exemplo acontece nas ciências, é a construção do objeto segundo os moldes concebidos previamente na mente. É como o concípio de Galileu: o que se concebe previamente na mente leva à perda de uma forma verbal de comunicação como meio de compreensão do outro e da natureza. Em outras palavras, falamos aqui de ideias e costumes pré-concebidos, que por vezes ou até na maioria das vezes, nos leva agirmos de forma cristalizada em modelos do passado, sem que sejamos capazes de nos apercebermos.


 De alguma forma, tudo o que se relaciona, o faz a partir do ponto de vista das coisas, do olhar do outro, que, na verdade, não está condicionado somente à capacidade intelectual de um indivíduo, mas também à possibilidade de conhecimento do mundo, das experiências vividas, de sua capacidade ou não de se deixar envolver e reconhecer a alteridade.


Na observação das cenas brutas fica explícito para o espectador a incapacidade de João em estabelecer qualquer tipo de interação afetiva com Santiago. Talvez, a dificuldade encontrada por João em finalizar o filme à altura em que foi rodado, já apontasse, mesmo que de forma ainda velada para ele mesmo, sua insuficiência de recursos, não da ordem de suas faculdades intelectuais, mas àqueles da ordem da compreensão que reside em algum lugar para além dos sentidos. 


Na retomada do filme podemos notar a tentativa que João faz no sentido de, mesmo que tardiamente, ir ao encontro de Santiago. A forma implacável com que João trata a si mesmo, sem subterfúgios ou meias palavras ao longo da versão final do documentário, se transforma, em alguma medida, na condição de possibilidade por ele encontrada para reparar e preencher o vazio deixado pela obra até então inacabada.  


Santiago é, sem sombra de dúvida o relato comovente, transparente, corajoso e ao mesmo tempo perturbador da tomada de consciência por parte de João de seu papel como cineasta, que se dá conta que um artista, mesmo sendo criador, não é dono de sua obra, mas é a própria obra em curso que o orienta.


A ABRACCINE (Associação brasileira de críticos de cinema), em 2005 apontou o documentário Santiago e o listou como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. 


Santiago foi o último filme de João Moreira Salles.



Referências 

Deleuze, G. (1985). L’image-temps (IT). Paris. Minuit

Ortega y Gasset, J. (1973). O homem e a gente: intercomunicação humana. Tradução de José Carlos Lisboa. Rio de Janeiro. Livro Ibero-Americano, 2ª ed.


Recursos Eletrónicos

Machado, R. (2009). Deleuze e a crise do cinema clássico. Seminários MV

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