segunda-feira, 13 de março de 2023


 Bernardo Soares – o outro que era o mesmo


“Viver é ser outro.” (Pessoa,2014:331) 

Conhecido como um dos semi heterônimos de Fernando Pessoa, Bernardo Soares tornou-se uma figura de difícil definição por sua tão grande proximidade do ortônimo. Nossa tentativa aqui é apenas  “aproximar o nosso olhar”, pois seria mesmo tarefa inglória tentar, no emaranhado, propositalmente (ou não) desconexo do universo, tanto do Livro do Desassossego quanto do próprio Pessoa, extrair verdades puras ou realidades últimas a respeito de Bernardo Soares, a quem próprio Pessoa, em alguns apontamentos encontrados nos fragmentos a serem inseridos no Livro do Desassossego, atribui sua autoria.   

Dentro do universo de possibilidades que o estudo do L. do D. suscita, percorreremos o labirinto de suas páginas utilizando a lanterna da Filosofia como guia e, do mesmo modo, atribuiremos um estatuto ontológico inteligível a Bernardo Soares, sem ater-nos a definições já estabelecidas quanto à sua semi heteronimicidade ou à sua personalidade literária. Assim, estando livres dessas “roupas”, talvez seja possível estabelecer algum tipo de contato com esse ente que, em alguma medida, compartilha um corpo material com Fernando Pessoa. 

O ambiente literário e artístico na passagem do século XIX para o século XX é marcado pelo surgimento do Decadentismo e do Simbolismo. Figuras como Mallarmé e Rimbaud, entre outros, transbordam seu desencanto com o Positivismo e já não acreditam mais na cientificidade que avança pelas artes. O Modernismo desponta como uma nova forma de manifestação artística, com o intuito de subverter a antiga ordem e instaurar uma nova forma de estar no mundo. Como em uma elipse, o sentimento de “ainda não – já não mais” que tomou conta dos artistas do início do século XX denunciava o afastamento de um passado seguro ao mesmo tempo que atestava a falta de esperança em algum futuro. 

A fragmentação do tempo presente e o sentimento de inadequação, fazem surgir a necessidade da criação de uma nova linguagem que dê conta de expressar esse novo presente que parece inexpressável, inominável que, entretanto, exige alguma ação. O sujeito cognoscente deixa de acreditar na razão e vaga perdido, repartido entre os estilhaços da sua razão, da sua loucura, da sua emoção.  Esse sujeito estabelece uma relação esfacelada entre o tempo, o homem e o espaço; rompe com a sensação de diacronicidade, de linearidade do tempo, que é substituída pela (de)composição de um tempo formado por fragmentos. 

A narrativa romanesca, onde a linha da “existência” dos personagens poderia (ou ao menos dava essa impressão) ser controlada por um autor/sujeito/demiurgo da narração perde lugar para uma narrativa fragmentada, onde não há mais uma sequência progressiva e nem um movimento linear “do tempo no espaço”. Em Portugal, o Modernismo, que contou com as contribuições de artistas como Mário de Sá-Carneiro, José de Almada Negreiros e o próprio Pessoa, teve como exponente de sua manifestação a revista Orpheu que, publicada pela primeira vez em 1915, causou um grande impacto, não necessariamente positivo, pelo menos na crítica de então.

Em meio a essa atmosfera, surgem os primeiros textos escritos por Pessoa, que mais tarde comporiam o L. do D., cuja autoria é, de início, supostamente atribuída a um certo Vicente Guedes, mais tarde, fala-se também a respeito do Barão de Teives e finalmente a Bernardo Soares - o ajudante de guarda-livros, da Rua dos Douradores, que “nem emoções nem sentimentos domina, e quando pensa é subsidiariamente a sentir.” (Pessoa, 2014:24). 

Os primeiros anos do século XX são movimentados por manifestações de configurações modernistas. A estética simbolista/decadentista do final do século XIX dá lugar ao vanguardismo, que, em alguma medida, representa a síntese do passado, do presente e do futuro. O isolamento psicológico do homem moderno, o sentimento de radical solidão e da perda de sentido da vida, dão azo à criação de heterônimos, semi heterônimos e personalidades literárias; recursos que Pessoa leva às últimas consequências.

Paralelamente, o fio condutor da narração deixa de ser a linha progressiva do tempo e daí surge a figura do flâneur, que funciona como o eixo onde os “instantes narrativos” são depositados. O flâneur é aquela personagem que mergulha no labirinto das cidades. É através do seu olhar que o leitor/espectador/destinatário das narrativas percorre os becos, bares e ruas - suas luzes e sombras. Ele projeta em si a imagem de alguém que se desloca pela cidade e por suas personagens, como se tudo ao seu redor fosse uma sucessão de cenários fixos, que ganham vida com sua passagem por eles, e que logo se apagam e são substituídos num moto contínuo, onde o movimento só existe à medida que o flâneur os atravessa. Em outras palavras o flâneur do modernismo representa a mobilidade, o movimento. 

Bernardo Soares teria sido um flâneur às avessas… O ajudante de guarda-livros, que durante o dia "não existia" no escritório onde trabalhava na Rua dos Douradores e que à noite brotava da escrita de Pessoa, a qual lhe dava a vida, remete-nos à alteridade a qual Platão se refere no diálogo Sofista: aquilo que está entre o ser e o não-ser; o intermédio, a possibilidade entre imobilidade e a mobilidade: 

 "(…) Certas musas da Jônia e da Sicília concluíram que o mais certo seria combinar as duas teses e dizer: o ser é, ao mesmo tempo, uno e múltiplo, mantendo-se a sua coesão pelo ódio e pela amizade. O seu próprio desacordo é um eterno acordo. Mas sem incorrer em censura." (Rocha, 2011:1)

Bernardo Soares é esse intervalo indefinido: mora na mesma rua em que trabalha, na Baixa de Lisboa. Vive num quarto alugado, no quarto andar de um prédio comum. Carrega o cansaço existencial, o tédio e a banalidade de uma vida cosmopolita, mas ao mesmo tempo reservada. A solidão e o silêncio, contrastando com a vida movimentada da capital…

As coincidências encontradas entre as biografias de Soares e Pessoa são indiscutíveis. A proximidade entre Pessoa e ele é simbiótica, pois como dito pelo poeta, “ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações” (Pessoa, 2014:46) ou em um outro fragmento, que dá conta de um momento em que Pessoa talvez começasse a se aperceber da aproximação dessa alteridade ainda que difusa, desse seu duplo: 

"É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessa todas as minhas visões demoradas de paisagens lentas, e de interiores antigos e de cerimônias de faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho ou realidade falsa, me acompanhas." (Pessoa, 2014:41)

Soares seria a “alma flâneur” de Pessoa.: comporta-se como um observador estoico, impessoal e de emoções contidas a cerca da rotina da vida cotidiana que o cercava. Era um deambulador urbano, à moda de Cesário Verde, como o próprio Soares se define, quando se refere à sua inadequação temporal: 

"Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual a dos versos que foram dele." (Pessoa, 2014:235) 

Bernardo Soares percorre a Baixa lisboeta e a descreve em suas vertentes físicas e humanas. Fixa os instantâneos do tempo em breves episódios de rua, de encontros em restaurantes e cafés, no barbeiro, em cenas no escritório onde trabalhava. Observa as pessoas, donos de lojas, costureiras, casais, recrutas, reformados. Descreve as tardes, as noites, a chuva, a primavera, o pôr-do-sol. Percorre ruas como a Alfândega. Viaja de comboio. Contempla o Cais do Sodré. A cidade e seus habitantes pulsam sob seu olhar. Cirúrgico na observação do real, desconexo na apreensão e delimitação entre o que sejam imagens reais ou imagens de sonho. O caráter onírico da narrativa de Soares dá a perceber que a todo o momento a percepção da realidade dá lugar à transfiguração poética do real. 

Suas divagações subjetivas em relação ao mundo exterior (e a si mesmo) convergem para viagens interiores onde surge a possibilidade de um mundo alternativo. A deambulação pelas ruas e praças da cidade segue um percurso moldado pelo sonho, principal alimento para as relações simbióticas de existência que se estabelecem entre Soares e Pessoa, Soares e a cidade, Soares e sua própria possibilidade de existência. 

Admitindo, como dito anteriormente, que Bernardo Soares pudesse ser a “alma flâneur” de Pessoa, seu duplo, seu mais próximo, seu mais íntimo e, tomando as opiniões correntes de seu caráter de homem de papel, não seria uma ousaria dizer que Soares seria a parte não-fingida do poeta fingidor. Seria sua voz mais profunda. Um coautor de todos os outros heterónimos. Aquele que coabitava o mesmo corpo de Pessoa.

No curso da leitura do L. do D. é possível notar que à aproximação de Soares não precede nenhum anúncio formal de Pessoa, fato que coaduna com o misticismo, o espiritualismo e a metafísica É possível observar que há vários fragmentos que falam de alguém que já manifesta o seu ser, mas que ainda não havia se dado a ver de forma clara. Em outros fragmentos, a impressão é que alguma comunicação já teria sido estabelecida, pois Pessoa fala de “alguém” que, em alguma medida, dá-lhe a saber si: 

"Nada o obrigara nunca a fazer nada. Em criança passara isoladamente. Aconteceu que nunca passou por nenhum agrupamento. Nunca requentara um curso. Não pertencera nunca a uma multidão. Dera-se com ele o curioso fenómeno que com tantos – quem sabe,  vendo bem, com todos? – se dá, de as circunstâncias ocasionais da sua  vida se terem talhado à imagem e semelhança da direção dos  seus instintos,  de inércia todos, e de afastamento. Nunca teve que se defrontar com as exigências do estado da sociedade. Às próprias exigências de seus instintos ele se furtou. Nada o aproximou nunca nem  de amigos ou de amantes. Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas – a par de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me  teve realmente  por amigo  – percebi sempre que ele alguém havia de chamar  para  lhe deixar o livro que deixou." (Pessoa, 2014:36)

A partir do momento que em Bernardo Soares se apresentou a Pessoa, estabeleceu-se entre eles um pacto de coabitação capaz de dar a ambos a possibilidade de uma existência que transcendeu a realidade sensível. Sendo sua parte interior, sua parte inteligível, Soares só poderia existir a partir da corporalidade de Pessoa, de sua presença material no mundo. 

O corpo de Pessoa, vivo, móvel, entregue a toda multiplicidade, ao devir, a todos os falsos, a todos os simulacros e à toda fragmentação da realidade, percorria a cidade, casas de pasto, praças e cafés. Entrava e saía dos elétricos e comboios. Cruzava com toda a gente que circulava ou habitava a Baixa lisboeta. Mas, era o olhar de Soares que capturava essas imagens, as absorvia, e que transmutava esses instantes cotidianos cosmopolitas em prosa poética. Soares era o mais íntimo de Pessoa. Era sua alma. Aquela que carregava suas memórias, suas reminiscências. Talvez sua única possibilidade de unidade, em meio à toda diversidade do mundo caótico e esfacelado que sua geração havia herdado.  Daí a condição avessa de flâneur de Bernardo Soares. 

Ao contrário do flâneur típico da Modernidade, que representa o deslocamento, o movimento, a ação que permite dar a ver o cenário da cidade que, estática, serve de passagem ao flâneur, Soares representa a paralisação, o não-movimento, a não-ação. Soares é um motor imóvel. É a psyché de Pessoa. É a sua parte una, que se desfragmenta no discurso – que só se torna fenômeno através da mão de Pessoa, “escrevente” de suas palavras – e nos sentimentos e apetites, constituintes naturais das almas humanas. 
Soares representa a potência onírica interior de Pessoa, que se expressa no ato da escrita. É sua voz mais poética, fingida de prosa, uma vez que, “em prosa é mais difícil de se outrar” (Pessoa, 2014:558).

A atitude de Pessoa em ser o “escrevente” do Livro do Desassossego se torna a condição de possibilidade de existência de Bernardo Soares, que tem plena consciência de que só vive através da escrita de Pessoa. 

"Passo numa rua. Não vejo nada ou antes olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados de casas feitos de casas diferentes e construída por gente humana. Passo numa rua. (…) Ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que  é a literatura." (Pessoa, 2014:340) 

Em uma carta escrita a Adolfo Casais Monteiro em 1935, ano de sua morte, Pessoa responde à pergunta sobre a gênese de seus heterónimos. De forma muito simples e natural, o poeta começa por explicar, o que ele acredita ser, sua condição psiquiátrica: 

"A origem de meus heterónimos é o fundo traço da histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente,  um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda    hipótese,  porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas." (Pessoa, 1999:345-346) 

Já no final do século XIX, a nevrose, a histeria e a neurastenia são as patologias que acometem os artistas que, mergulhados no sentimento decadentista assumem uma tendência de associação da loucura ao génio: “A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada de loucura latente.” (Pessoa, 2014:327). 

Quando o século XX chega, o que se encontra é uma geração à procura de algo que não sabe bem o que é. Sabe que não pode mais ser guiado pela fé cega e não confia mais na ciência. Com a perda da confiança em Deus e na ciência (ou seja, no próprio homem), só lhe resta a arte. Na criação artística, o homem se vê com um criador de mundos, aquele que produz um terreno fértil para o nascimento de novas linguagens, que têm a missão de dar conta do que não faz mais sentido. É como se somente a contemplação estética pudesse salvar o homem do limbo existencial. 

Pessoa em sua radical despersonalização, seja por alguma razão orgânica, seja pela potência de seu génio literário ou por uma junção das duas coisas, deu à luz à mais impressionante experimentação de desfragmentação do sujeito já vista. Seus heterónimos mais famosos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis (este último trazido de volta do Brasil, em 1935, por Saramago – em O ano da morte de Ricardo Reis, editado pela Caminho, em 1984) eram vistos [em algum lugar de sua imaginação, “no espaço incolor, mas real do sonho” (Pessoa, 1999:345-346)] pelo poeta em sua aparência física, e tiveram suas personalidades, estilos e vidas (autónomas) construídas por ele.

Diferentemente de todos eles, Bernardo Soares era o outro. Sem existência autóctone, dependia da materialidade de Pessoa para existir. Definido como um semi heterônimo por Pessoa, sua aproximação era sempre precedida por um certo entorpecimento dos sentidos de seu “escrevente”, como o próprio poeta descreve a Casais Monteiro: 

"(…) aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade." (Pessoa, 1999: 345)

Soares estabelece com Pessoa um pacto de escrita baseada na estética do sonho, “assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos” (Pessoa, 2014:219), evidenciada numa “existência” dupla: durante o dia, banal, anônima, invisível; e durante a noite, uma identidade oculta dá lugar ao artista, poeta da prosa, um observador esteta da vida cotidiana, prosaica. O estoicismo de Bernardo Soares, como uma “necessidade orgânica” (Pessoa, 2014:166), direciona sua observação da vida como se fora a contemplação de um espetáculo. Sempre atento a tudo o que seja da ordem do cotidiano, desde as coisas mais simples, o guarda-livros é guiado por uma disciplina filosófica que o impele a ser sempre contido, fixado na intelectualização das emoções. Desejar de acordo com a natureza, ou simplesmente não desejar: “(…) narro indiferentemente a minha biografia sem factos, a minha história sem vida” (Pessoa,2014:291)

A consciência que tem sobre sua existência de papel, lhe dá o entendimento de sua não-corporalidade, de sua imobilidade enquanto matéria: “tornei-me uma figura de livro, uma vida lida.” (Pessoa, 2014:407). Personagem dos dramas seus, Soares mostra no curso da leitura dos fragmentos do L. do D. sua fenomenologia: um homem de papel, que só se manifesta através da palavra escrita, que tem em seu ortônimo, o veículo que dá possibilidade à sua comunicação com o mundo. A língua portuguesa é sua pátria, pois é nela que ele existe. Soares existe na linguagem, lembrando o que nos ensina Martin Heidegger, em seu livro A caminho da linguagem (Heidegger,2003:191), que a linguagem nos antecede, nos envolve. Soares “vive uma vida” indiferente aos acontecimentos materiais que uma vida corpórea possa suscitar – sejam eles bons ou maus. Para ele, aborrecimento é deparar-se com a página mal escrita, “sim, porque a ortografia também é gente” (Pessoa, 2014:422)
 
Observando a datação dos fragmentos do L. do D. é possível notar que o período que compreende os anos de 1929 e 1931 foram os mais produtivos de Bernardo Soares. Seus textos demonstram já algum cansaço existencial, ao mesmo tempo que carregam variadas referências indiretas de que seu interesse pela filosofia foi muito além do Estoicismo. O pessimismo de Schopenhauer pode ser encontrado nas afirmações sobre o isolamento do indivíduo, bem como o sentimento de posteridade nietzschiano, quando afirma que só as gerações futuras serão capazes de compreender o teor de sua escrita. Há também traços de uma exposição às avessas da dialética do esclarecimento hegeliana; do entendimento da alteridade, através da leitura platônica das teses de Parmênides e Heráclito, da imobilidade da alma e sua substancialidade e da mobilidade do corpo e da multiplicidade do mundo.

Bernardo Soares deixa de existir com a morte de Fernando Pessoa, em 30 de novembro de 1935. Como uma metonímia de seu próprio livro, a existência de Soares cessa quando as palavras já não podem mais ser transcritas pela falta de seu escrevente. Como uma metáfora da própria vida, o Livro do Desassossego é o conjunto de folhas soltas que, como um registro fotográfico, tenta captar instantes absolutos, cujas datas, apontamentos e nomes de pessoas e lugares são registrados no verso de cada foto, para que não sejamos apanhados nas armadilhas da memória (ou da falta dela). É o retrato da fragmentação em que o indivíduo se vê à altura, diante das ruínas de suas  certezas, e que nenhum poeta conseguiu representar como Pessoa, no entendimento de Eduardo Lourenço: 
 
"A absoluta perdição do sentido do nosso destino enquanto mundo moderno (…) De uma maneira ou de outra, o homem moderno coparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo que pouco a pouco emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização actual." (Lourenço, 2008:14) 

Editado pela primeira vez cinquenta anos após a morte de Pessoa, o L. do D., para além de narrar o cotidiano da Lisboa das primeiras décadas do século XX representa um dos maiores exercícios de despersonalização literária de todos os tempos. Pessoa desfila seu génio literário, travestido de um outro, que por vezes são outros, por mais de quinhentas páginas que, a meu ver nunca serão totalmente reveladas em sua mais íntima essência. 

O que seria afinal o Livro do Desassossego? Um delírio de um génio esquizofrênico? Um diário onírico de um homem, cuja vida cotidiana estava aquém de seu universo interior? Um aglomerado de peças criadas pelo poeta para uma montagem póstuma? Um não-fingimento tão fingido, que nem o próprio fingidor teria dado conta de não fingir o que sentia? Um não-livro? Um (des)livro? 

"O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenómeno da minha  despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para a explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, VIAJO. (…) Vou mudando de personalidade, vou (…) enriquecendo-me  na  capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo." (Pessoa, 1999:350) 

Referências

Heidegger, M. (2003). A caminho da linguagem. Trad. de Marta Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis. Ed. Vozes

Lourenço, E. (2008). Fernando Pessoa. Rei da nossa Baviera. Lisboa. Gradiva. 

Pessoa, F. (1999). Correspondência: 1923-1935. Org. Manuela Parreira da Silva. Lisboa. Assírio & Alvim.

________ (2014). Livro do Desassossego. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa. Tinta da China. 

Rocha, P.G.A. (2011) A leitura platônica de Parmênides e Heráclito no diálogo Sofista de Platão. Projeto de Iniciação Científica. Rio de Janeiro. UNIRIO