terça-feira, 14 de março de 2023



O que farei com este livro?


No ano das comemorações do quarto centenário de morte de Luís Vaz de Camões, 1980, José Saramago foi convidado a criar uma peça sobre o poeta, principalmente por conta de suas poesias e crônicas, nas quais Camões era figura frequente.


Para escrever a peça Que farei com este livro? Saramago dedicou-se a uma pesquisa histórica, tentando buscar o máximo de informações confiáveis possíveis, uma vez que, como é sabido, as fontes histórico-biográficas sobre Camões são nebulosas e controversas. Como é recorrente na obra de Saramago, na peça, que não é sobre a vida de Camões, mas sim um pequeno recorte de um período de sua vida, é possível encontrar ficcionalização de personagens históricos e uma intertextualidade, neste acaso não explícita, com a conjuntura sócio-política de Portugal à altura, apenas há poucos anos da Revolução dos Cravos.


A peça


A ação se passa entre abril de 1570 e março de 1572. Camões volta a Lisboa, depois de 17 anos, vindo da Índia e de Moçambique. Traz consigo somente os manuscritos d’Os Lusíadas. Vem pela mão do amigo Diogo do Couto, que praticamente o resgata de Moçambique, pagando suas dívidas e sua passagem. Sem recursos, volta a viver na Mouraria, onde mora sua mãe, Ana de Sá, em uma casa simples, de poucos recursos.


No primeiro ato, Saramago retrata as vicissitudes e as redes de intrigas, típicas da corte, que nesse período estava transferida para Almerim, por conta da peste que assolava Lisboa. O reinado era o de d. Sebastião, um quse adolescente que não tinha lá muito interesse pelos assuntos específicos do reinado e que tinha sua masculinidade questionada pelos corredores do palácio, por sua resistência ao casamento.


A disputa entre o poder político e o poder religioso era declarada: de um lado D. Catarina de Áustria, avó do rei, e de outro o cardeal D. Henrique, seu tio. Cada um deles querendo destinos diferentes para o reino de Portugal, antecipando, cada um a seu modo, o futuro sombrio que aguarda o país.


À época do retorno de Camões a Portugal, a Inquisição está no auge, a peste já havia vitimado milhares de pessoas e o país estava prestes a perder sua independência. Era um momento triste tanto para o país, quanto para Camões, que retornado da Índia, alquebrado, pobre, desconhecido na corte, em total desamparo, não fosse pelas mãos generosas de alguns amigos, lutava para sobreviver na cidade mergulhada na peste e na pobreza.


O segundo ato apresenta os esforços de Camões para conseguir que seu livro seja publicado. Sem dinheiro e sem prestígio, ele conta com a ajuda prestimosa de D. Francisca de Aragão, dama da corte que, apaixonada por ele, intercede a seu favor na obtenção do alvará régio, para que ele possa levar seu manuscrito ao Santo Ofício, afim de que lhe seja concedido o alvará de impressão.


Camões enfrenta o relator do Santo Ofício designado para ser o examinador de seu livro. O padre inquisidor, escrutina o livro por diversas vezes, procurando sinais de heresia, fazendo com que Camões retorne várias vezes à sua presença para dar explicações e se submeter às alterações impostas, sob pena da não liberação do livro.


Depois de muitos meses nesse enfrentamento e por tantas vezes tendo sido hábil na argumentação para convencer o inquisidor de que seus versos nada mais faziam do que exaltar a Deus, à Pátria e el-rei, Camões finalmente recebe o alvará do Santo Ofício para a publicação da obra.


De posse da tão pelejada autorização, o poeta se vê diante de um obstáculo ainda maior: a falta de recursos para financiar a impressão. D. Francisca de Aragão oferece-se mais uma vez para ajudar, mas ele recusa veementemente. Camões então vai até a tipografia de António Gonçalves a fim de orçar os custos da eventual impressão do livro.


O poeta fica desolado com a resposta do tipógrafo, que o faz saber que, na situação de penúria em que se encontra, não terá a mínima condição de arcar com as despesas de impressão. António Gonçalves ainda sugere que Camões faça como os outros autores, que consiga um padrinho para arcar com a impressão, mas o poeta responde que seu livro não mereceu padrinho.


Dias depois, Camões volta à tipografia e propõe ao tipógrafo um acordo para a impressão, que pede para pensar antes de dar uma resposta. A cena final da peça mostra o servente do tipógrafo entregando a Camões um exemplar impresso d’Os Lusíadas.


A ação central da peça se passa num momento muito específico vivido por Camões e profundamente ligado à sua obra prima. A peste que se abate sobre a cidade de Lisboa à altura do retorno do poeta é histórica e metafórica. Existem sim relatos sobre a epidemia de peste de Lisboa pelos idos de 1570, mas a peste também é metáfora para os tempos sombrios pelos quais Portugal passava.


A melancolia que acomete o poeta se iguala à tragédia social da qual a nação é vítima. Da mesma forma, a corte revela a decadência do reino, a ignorância e a intolerância de seus cortesãos e o desprezo pela população.


O homem quinhentista se vê submetido ao abandono da peste, às atrocidades cometidas pela Inquisição, à censura que mutilava corpos e mentes em nome de um Santo Ofício. Um rei muito jovem que desaparece após uma batalha em uma terra distante e passa a fazer parte um imaginário mitológico e messiânico e da origem ao Sebastianismo – a crença no libertador que nunca regressa para erguer a nação, que cai de joelhos após a inevitável submissão que a união ibérica impõe aos portugueses.


Hábil como Camões, que para dar voz a seu livro usa de toda sua astúcia para conseguir obter seu alvará de impressão por parte do Santo Ofício, Saramago provoca, através do recorte temporal da peça, uma reflexão do público sobre o momento sócio-político-cultural vivido em Portugal em 1980, em que a conjuntura nacional está tão próxima da depressão como estava à altura do retorno do poeta.


A peste do século XVI representa os anos de chumbo da ditadura salazarista do século XX, a Inquisição representa a censura, que continuou mutilando e calando corpos e mentes. Ninguém mais espera pela volta de D. Sebastião, mas o próprio Camões é elevado à categoria de salvador da honra nacional, justamente por cantar o passado glorioso dos portugueses e servir como uma alavanca da moral nacional – recurso utilizado inicialmente por Almeida Garrett e depois pela própria ditadura.


O tom melancólico dado ao Camões-personagem assemelha-se ao tom atribuido ao Camões-histórico dos sonetos. Mas, apesar da tristeza, do cansaço e dos ares desesperançados do poeta na peça, é indiscutível o brilho e a argúcia, permeados com pitadas de ironia, com que o poeta enfrenta as arguições do examinador do Santo Ofício para garantir a liberação de seu livro.


Camões luta como um bravo soldado pela obra de sua vida.



Referências 

Lourenço, E. (1998). Mitologia da Saudade. São Paulo. Cia das Letras. 

Saramago, J. (1998). Que farei com este livro? São Paulo. Cia das Letras.

Saraiva, A.J. & Lopes, O. (2017). História da Literatura Portuguesa. Porto. Porto Editora.

Wikipedia DOI https://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_I_de_Portugal 

Acesso em: 01/06/2018








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